Nem todo paciente que relata desconforto ao consumir alimentos com glúten é portador de doença celíaca. Da mesma forma, nem todos se beneficiam da exclusão do glúten da dieta. Por isso, é fundamental que médicos e profissionais de saúde saibam quando suspeitar de doença celíaca e como realizar uma investigação diagnóstica eficiente e baseada em evidências.
Este artigo apresenta as recomendações mais recentes da Sociedade Europeia de Gastroenterologia, Hepatologia e Nutrição Pediátrica (ESPGHAN), com foco na detecção precoce e no uso adequado de exames laboratoriais, evitando tanto o subdiagnóstico quanto o excesso de restrições dietéticas, visando responder a pergunta: Quando Investigar Doença Celíaca?
Doença Celíaca: O Que É e Quando Suspeitar?
A doença celíaca é uma condição autoimune desencadeada pela ingestão de glúten, uma proteína presente no trigo, centeio e cevada. Em indivíduos geneticamente predispostos, a exposição ao glúten provoca uma resposta inflamatória que danifica a mucosa do intestino delgado, comprometendo a absorção de nutrientes.
Contudo, os sintomas podem variar amplamente e, em muitos casos, são atípicos ou extra-intestinais. Por isso, é essencial conhecer os principais sinais clínicos e fatores de risco que indicam a necessidade de investigação.
Principais Sintomas Indicativos de Doença Celíaca
A apresentação clínica da doença celíaca é diversa e pode ser dividida em manifestações intestinais e extra-intestinais:
Sintomas gastrointestinais (clássicos)
- Diarreia crônica
- Dor abdominal recorrente
- Distensão abdominal
- Perda de peso involuntária
- Constipação, em alguns casos
Esses sintomas refletem a má absorção de nutrientes devido à inflamação intestinal persistente.
Sintomas extra-intestinais (atípicos)
- Anemia ferropriva resistente à suplementação
- Fadiga crônica
- Osteopenia ou osteoporose
- Atraso no crescimento (em crianças)
- Erupções cutâneas, como a dermatite herpetiforme
- Dores articulares
- Cefaleia
- Neuropatia periférica
É importante lembrar que, em muitos pacientes, especialmente adultos, os sintomas não são digestivos, o que torna o diagnóstico ainda mais desafiador.
Diretrizes ESPGHAN: Quando e Como Investigar a Doença Celíaca
As diretrizes da ESPGHAN publicadas em 2020 orientam uma abordagem racional para o diagnóstico da doença celíaca. A principal recomendação é iniciar a investigação em pacientes com sintomas compatíveis ou com fatores de risco conhecidos.
Exames laboratoriais indicados no rastreamento inicial
A ESPGHAN recomenda os seguintes exames como primeiros passos para investigação:
- IgA total
- Anticorpo anti-transglutaminase tecidual (TGA-IgA)
O TGA-IgA é altamente sensível e específico para doença celíaca. No entanto, é essencial avaliar também a dosagem total de IgA, uma vez que a deficiência de IgA pode causar falsos negativos no teste de TGA-IgA.
Quando é possível dispensar a biópsia?
Em crianças e adolescentes com TGA-IgA maior que 10 vezes o limite superior do normal e anticorpo anti-endomísio (EMA-IgA) positivo, pode-se confirmar o diagnóstico sem necessidade de biópsia duodenal, desde que haja sintomas compatíveis.
Essa abordagem, validada pelas diretrizes, reduz a invasividade do processo diagnóstico, tornando-o mais confortável e acessível.
Fatores de Risco que Justificam a Investigação
Além dos sintomas, a presença de condições associadas ou história familiar aumenta a probabilidade de doença celíaca e justifica o rastreamento ativo.
Doenças autoimunes associadas
- Diabetes mellitus tipo 1
- Tireoidite de Hashimoto
- Doença de Addison
- Artrite reumatoide juvenil
História familiar positiva
Parentes de primeiro grau de pessoas com doença celíaca têm risco aumentado (até 10%) de também desenvolver a doença, mesmo na ausência de sintomas. A triagem desses indivíduos é recomendada para detecção precoce e prevenção de complicações.
Diagnóstico Correto Evita Restrições Desnecessárias
A retirada do glúten da dieta deve ser realizada somente após confirmação diagnóstica, preferencialmente com exames laboratoriais e, quando necessário, biópsia. A adoção precoce de uma dieta isenta de glúten sem diagnóstico pode dificultar a interpretação dos testes e até mascarar a doença.
Além disso, excluir o glúten de forma desnecessária pode resultar em:
- Deficiências nutricionais
- Custos financeiros adicionais
- Impactos psicológicos negativos
Por isso, o diagnóstico preciso e baseado em evidências é fundamental antes de instituir a dieta restritiva.
Conduta Clínica: Como Proceder em Casos Suspeitos
- Avaliação clínica detalhada: verificar sintomas gastrointestinais e extra-intestinais, histórico familiar e presença de doenças autoimunes.
- Solicitação dos exames iniciais: TGA-IgA e IgA total.
- Interpretação dos resultados: considerar repetir ou complementar com EMA-IgA e/ou biópsia conforme o caso.
- Confirmação diagnóstica: estabelecer o diagnóstico antes de iniciar dieta sem glúten.
- Encaminhamento e acompanhamento: se confirmado, o paciente deve ser acompanhado por equipe multiprofissional (gastroenterologista, nutricionista, endocrinologista, etc.).
Conclusão: Quando Investigar Doença Celíaca?
A investigação da doença celíaca deve ser considerada em pacientes com sintomas gastrointestinais crônicos, manifestações extra-intestinais inespecíficas e na presença de fatores de risco clínicos ou genéticos. O uso criterioso das diretrizes da ESPGHAN melhora a precisão diagnóstica, reduz a necessidade de biópsias invasivas e evita restrições dietéticas desnecessárias.
Uma abordagem clínica cuidadosa, baseada em evidências, é essencial para oferecer aos pacientes o melhor cuidado possível e melhorar sua qualidade de vida.
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